Coisas
As pessoas sao sempre alguma coisa. Os maus humores permanentes, o acordar no lado obtuso da cama, o corpo mordido pelo frio e o endredao amarfanhado por ela, num outro corpo. O cafe matinal que se quer doce, bebido a correr entre uma chapata e um croissant misto, a leitura das noticias por entre os tuneis do metro, em letras gordas, os pequenos anuncios breves de um pais adiado, incluindo anuncios publicitarios a telemoveis.
As coisas dentro dos jornais sao um espelho, as palavras ganham rumos mas ninguem comenta firmemente, ou se comenta acrescenta pouco a realidade de outras coisas que ja existem ha muito tempo. O que sao as outras coisas? O sindroma do Velho do Restelo, a ideia de que, "Antes e que era bom", as teorias da conspiracao por nao ser possivel manter a mesma inpunidade anos a fio, a falta de clareza nos resultados desportivos, o adiamento de decisoes (de escolhas) simples, a falta de imparcialidade dos jornalistas. Outras coisas, ainda, que sao? Dialogos com filhos, abracos de mulheres de quem nao se tem saudade, porque se repetem na sua fugacidade, o terminar uma chamada telefonica com um "Entao va, um beijinho grande!". Despegar do medo, ler noticias breves a um idoso lucido do cafe, comentar a realidade politica tratando-o por tu e repetir a graca por respeito e desejo de manter velhos lacos, cumprimentar com um abraco o inimigo faustoso e por tras confirmar-lhe o odio, aparar dez lapis de carvao de uma vez porque as lapiseiras de minas finas se partem vezes demais. Sao tudo coisas. Estas coisas. Gastar palavras para reconhecer nos outros quem sao.
Por vezes pessoas parecem coisas e coisas parecem pessoas. Outras vezes sao mesmo. Afora horas, aquela culpabilidade de se ter gasto o tempo todo e fruto de uma elementar humanidade redimida por gestos simples. Cada gesto de cada pessoa e um esquema na sua identidade. O texto simetrico, a obra pos-moderna, a literatura de pacotilha, a literatura de peso e de mesura , as paixoes repentinas, as incertezas, o carteiro tumido, a empregada do cafe que recebe trocos enquanto exibe a perna por baixo do avental branco, a senhora da padaria com as maos sujas de farinha e a memoria limpa de sonhos, os empregos esparsos, os textos do dia, a Sagrada Escritura, o homem do outro lado da linha de telefone que diz ser impossivel enviar dinheiro, a mulher que chora, outro homem que soluca, a fazedura das camas, a comida na mesa, o talento, a reputacao, os livros empilhados aos cantos da casa, o barulho da escola quando as criancas comemoram a falta do professor, o despejar do lixo, as viagens, os convites para jantar, os convites para trabalhar, sao tudo coisas que os autores convertem em realidade, porque as fazem, sentem e as tornam suas. Por serem o que sao, inesperadas e planeadas, segundo um codigo de conduta das pessoas, sao inatacaveis. O mundo e identificado por este amontoado de inetencoes. Continuando: a mancha de agua debaixo de um ceu luminoso, o berro contra a vizinha do lado que nao consegue falar num volume aceitavel, a ladainha dos feirantes, a conversa na cafetaria sobre filhos e netos exibidos em carrinhos com rodas enormes, expostos numa montra, o casal de floristas farto de si mesmo. Sao coisas que acontecem. As pessoas tem sempre culpa de serem alguma coisa, mas podem ser muito mais do que isso.
-E-
2 Comments:
...mas sempre há um céu intensamente azul numa manhã fria, um banco isolado numa estação vazia, em que se pode sentar, esticar as pernas e, silenciosamente, esperar...
Já pareces o gajo da "Náusea" do Sartre - do cimo da colina "julga " todos os habitantes de "Bouville"... mas quem é ele, afinal? E não será este sentido de auto e hetero critica apenas mais uma desculpa?... outra pequena manifestação dessa existência não intencional que nos coisifica?...
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