sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Return to Innocence

Com o corpo dorido, sentia nitidamente que estava a despertar. Os meu olhos pareciam estar a descolar-se depois de um sono prolongado. A visao estava especialmente turva. So conseguia ver vultos. Uma voz proferiu:"Bem-vindo 'stranger', finalmente!" Era a Priya a rir e a chorar ao mesmo tempo. "Pensava que te tinha perdido. Que alivio!" Eu mal conseguia falar: "Mas o que e que se passou? Onde e que eu estou??", perguntei. "Estiveste mais de 24 horas em coma. Que susto nos pregaste!" Olhei para o lado estavam os meus pais e restantes amigos, felizes por me ver desperto.
E pensava eu que aquele fim-de-semana iria ser demasiado calmo...

27 horas antes...

"Como e que eu vim aqui parar???", pensava eu. Nunca a expressao "uma luz ao fundo do tunel" me fez tanto sentido. Comecei por ter alguns 'flashbacks' da minha vida numa ordem cronologica descendente. Sentia-me em paz e extremamente feliz. A minha volta, muitas pessoas vestidas de branco num infindavel jardim, muito verde. As cores e o Sol feriam agradavelmente a vista. A felicidade era tanta que nem me interrogava pelo facto de nao conhecer ninguem e daquele sitio me ser completamente estranho...

20 segundos antes...

Ja a caminho do hospital universitario de Lewisham e depois de uma demorada discussao sobre se eu devia ou nao prosseguir com a experiencia, ninguem falava dentro do carro da Sarah. " E se alguem nos apanha a todos no hospital, isso nao te vai prejudicar Priya?", perguntava o Alistair, quebrando o silencio. " Nao te preocupes, eu conheco bem o seguranca e estou prestes a realizar uns dos grandes sonhos da minha vida!" Depois de passar pelo seguranca, que pensava eramos todos estagiarios, entramos numa impressionante sala de reanimacoes. O meu coracao batia cada vez mais forte e doia-me imenso o estomago. Estava visivelmente nervoso, mas com uma inexplicavel determinacao. A Rachel, a mais nova do grupo, comecou de repente a chorar e abracou-me com toda a forca dizendo: " Se morreres eu mato-te!" Foi nesse momento que me apercebi que estava perante os meus verdadeiros amigos. A Priya, de bata parecia mesmo uma medica. Mediu-me a tensao e injectou-me um liquido que nao me lembro bem do nome: "A fingir que vais dormir uma sesta. Quando acordares, vais-te sentir um bocado tonto e enjoado, mas isso e normal. Vou comecar a reanimar-te passado um minuto em ponto. Vemo-nos daqui a pouco 'Gorgeous'!" Deitei-me na marquesa com uma mascara de oxigenio, olhei para todos e disse: "Ate ja amigos!" Estavam todos visivelmente emocionados. Comecei a sentir os meus olhos pesados a de repente apaguei.

19 minutos antes...

O meu coracao comecou a bater a galope. Olhei para o Alistair e este estava branco que nem cal. A Sarah, que parecia ser a unica pessoa sobria do grupo, decide mudar de assunto propondo irmos comer qualquer coisa a casa dela. A Rachel so dizia abanando a cabeca:"Voces devem ser doidos!". A Priya insistiu mais uma vez:" E entao, nao ha voluntarios? Estamos a beira de dar um passo decisivo para Humanidade e voces nao respondem!" Ao que decidi perguntar:
"Hospital? Sala de reanimacoes? Mas como e que..." Ela interrompeu--me com o ar mais natural do mundo a demonstrar ja algum pragmatismo e uma certa frieza de sentimentos, muito caracteristica dos medicos: "Simplesmente porei um de vos fora do ar durante um minuto, para depois reanima-lo(a). com os aparelhos que tenho a disposicao no hospital. Quando o voluntario acordar, podera contar-nos como foi a experiencia: o que viu e sentiu durante esse minuto. Eu ate podia ser a cobaia, o problema e que voces nao tem conhecimentos suficientes para me reanimar... "
O Alistair depois de algum silencio, decide intervir e tenta dissuadir a Priya, dizendo que estava apenas a provoca-la. Inexplicavelmente, tudo comecou a fazer sentido na minha cabeca... a vida para alem da morte foi sempre um assunto que me interessou e o facto de sabermos que nem tudo acaba com a nossa morte e reconfortante. Para alem do mais conhecia a Priya ha ja alguns anos e confiava piamente na sua capacidade como futura profissional de medicina. E, mais uma vez, o alcool so ajudou... Decidi ser a cobaia e ofereci-me como voluntario. A Sarah, de uma forma determinada, levanta-se e diz: "Vamos embora, estamos a precisar todos de uma boa noite de sono! Kaf, vamos embora que eu dou-te boleia". Para felicidade da Priya eu gritei, chamando a atencao das pessoas das restantes mesas do bar : " Esta decidido! Eu quero passar por esta experiencia".

2 segundos antes...

Encontramo-nos todos as 22h no Musee Bar a excepcao da Sarah que tinha tido uma discussao acesa com o namorado e nao sabia se podia encontrar-se connosco. Depois de alguns 'pints' e muito provavelmente devido ao efeito do alcool, comecou-se a falar em religiao, a proposito do actual Papa e da sua visao (para muitos extrema) acerca da vida, particularmente sobre o aborto, a eutanasia e o uso do contraceptivos. Gerou-se um debate sobre a eutanasia em que todos fizeram questao de intervir, uns mais convictos do que outros. A Priya, estudante de Medicina, de origem indiana e crente na religiao Hindu, era quem mais refutava a visao catolica da vida. Comecou entretanto por mencionar a importancia da reencarnacao na religiao hindu e dizia mesmo:" Nao hei-de morrer sem provar cientificamente que existe vida para alem da morte. So assim e que a humanidade dara valor a religiao milenar que e o hinduismo!..." O Alistair, ateu por conviccao, para provoca-la ainda mais decidiu utilizar a sua psicologia barata e afirmar que isso nao passava de uma utopia introduzida por algumas religioes, nao tendo a reencarnacao qualquer fundamento.
Ja estavamos todos um bocadinho 'tocados' e esta provocacao do Alistair so veio trazer mais tensao ao pseudo debate. Entretanto, a Sarah decidiu aparecer. Parecia estar um bocado em baixo, mas quando se apercebeu do tema da conversa, nao pode deixar de sorrir, uma vez que Alistair era seu ex-namorado. De repente, fez-se um silencio e por momentos ficamos literalmente petrificados quando a Priya decide dizer o seguinte: " Alistair, proponho testar hoje se ha vida para alem da morte. Que tal? Podiamos ir ao hospital onde estou a estagiar. Como tenho livre transito, poderiamos utilizar a vontade a sala suplente de reanimacoes. Temos algum voluntario? Alistair?"

3 horas antes...

Depois da semana stressante de exames que passou, a sensacao de dormir por mais umas horas a um Sabado de manha nao podia ser melhor. Nao tinha quaisquer planos para o fim-de semana. O mais certo era ir tomar um copo com o pessoal. Entenda-se por pessoal a Sarah, Alistair, Prya e Rachel, o meu novo circulo de amizades de Faculdade, desde que me mudei de Nottingham, minha terra natal, para a City. Meu nome, J. Kafka. Os amigos chamam-me Kaf. Geralmente nunca paro em casa ao fim-de-semana, entre copos, discotecas e barbecues ao Domingo, quando o tempo o permite. "Ja ha muito que nao tinha um fim-de-semana tao calminho", pensava eu. A neve, o frio e os exames, sao ingredientes essenciais para uma inevitavel 'hibernacao'. Depois de uma tarde extremamente calma entre leituras e filmes, lembrei-me de dar um toque ao Alistair e desafia-lo para um 'pint' em Greenwich. Depois de conseguir convence-lo, ele por sua vez contactou com a Priya e eu com a Sarah e Rachel.
-E-

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Rir, Roer

E se fôssemos rir,
Rir de tudo, tanto,
Que à força de rir
Nos tornássemos pranto,

Pranto colector
Do que em nós sobeja?
No riso, na dor,
Que o homem se veja.

Se veja disforme,
Se disforme for.
Um horror enorme?
Há outro maior...

E se não houver,
O horror é nosso.
Põe o dente a roer,
Leva o dente ao osso!

Alexandre O'Neill (1924-1986)