segunda-feira, novembro 28, 2005

Porque esteve Paris a arder?

Mais uma vez acordei tarde para um assunto depoletado por uma troca de e-mails entre dois amigos meus! Paris tem estado, de facto, a arder. No entanto, os fogos postos a que assistimos ha algumas semanas, sao um pequeno rastilho aceso dos fogos que estao para vir. As minhas curtas incursoes pela capital francesa mostraram-me que quem deixa o centro de Paris e as suas conotacoes fantasistas e romanticas pintadas de Sena e Torre Eiffel, de cafes e boulevards, de croissants e gastronomia, e decide apanhar a rede de metro suburbana, podera deparar-se com o inferno no fim da linha. E como passar de um mundo para outro, nos antipodas. Os suburbios de Paris onde moram tantos imigrantes, entre eles os portugueses, sao uma massa de desumana arquitectura, talhada e arrumada de proposito para mostrar a quem la vive a sua alienacao e a sua diferenca desintegrada. Como muitos suburbios europeus, trata-se de uma arquitectura monstrusosa e apocaliptica, de corredores desabrigados e materiais frios sem vida comunitaria. Lugares onde as pessoas vivem como em gaiolas, atomizadas, isoladas, reduzidas a infima especie da sua condicao menor.

Por mais que a Franca igualitaria, republicana, fraternal e idealista, criadora dos Direitos do Homem e herdeira espiritual do Iluminismo, queira pensar e repensar o fenomeno da integracao dos imigrantes e das suas politicas, o facto saliente e este: ninguem, salvo escassissimas excepcoes esta integrado. Magrebinos, negros, arabes, os grupos mais representados, quase todos eles um subproduto residual do colonialismo frances e das suas guerras de libertacao, sabem a partida que podem trabalhar em Franca, viver em Paris, mas viverao sempre a sombra da luz que ilumina os brancos e os filhos da terra e do sangue. O racismo frances, latente ou explicito, contaminou sempre a sociedade francesa, uma das sociedades mais chauvinistas e xenofobas do mundo, apesar da capa "cultural" e das manias snobs dos intelectuais que gostam de "descobrir" culturas marginais mas, nunca, de as integrar em pleno direito como francesas ou europeias. A integracao cultural falsa, assente em meia duzia de participacoes controladas dos estrangeiros "escolhidos", nao oculta nem pode ocultar a separacao profunda e radical entre o Estado frances e os grupos etnicos que lhe sao estranhos, pelos habitos, tradicoes, pobreza, ignorancia e cor da pele.

Esta gente, remetida para "ghettos", de onde so sai para trabalhar, espera na ansiedade, na raiva e no desespero. Paris nao e Londres ou Nova Iorque, que acolheram sociedades multirraciais sem fracturas nem degradacoes tao humilhantes como as que atingem os imigrantes em Franca. Paris nao e, sequer, Berlim. E uma capital de luxo e bem-estar, cercada de arame farpado e favela melhorada. Nem os decrepitos partidos franceses e os seus dirigentes, mais um Chirac decadente e na recta final, estao preparados para enfrentar este magno problema, que requer mais do cargas policiais e manifestacoes de forca e autoridade. Estes imigrantes desafectados tornar-se-ao, no seu abandono, um perigo sociologico e uma subcultura de crime e desvio de norma.

-E-

domingo, novembro 20, 2005

Coisas

As pessoas sao sempre alguma coisa. Os maus humores permanentes, o acordar no lado obtuso da cama, o corpo mordido pelo frio e o endredao amarfanhado por ela, num outro corpo. O cafe matinal que se quer doce, bebido a correr entre uma chapata e um croissant misto, a leitura das noticias por entre os tuneis do metro, em letras gordas, os pequenos anuncios breves de um pais adiado, incluindo anuncios publicitarios a telemoveis.
As coisas dentro dos jornais sao um espelho, as palavras ganham rumos mas ninguem comenta firmemente, ou se comenta acrescenta pouco a realidade de outras coisas que ja existem ha muito tempo. O que sao as outras coisas? O sindroma do Velho do Restelo, a ideia de que, "Antes e que era bom", as teorias da conspiracao por nao ser possivel manter a mesma inpunidade anos a fio, a falta de clareza nos resultados desportivos, o adiamento de decisoes (de escolhas) simples, a falta de imparcialidade dos jornalistas. Outras coisas, ainda, que sao? Dialogos com filhos, abracos de mulheres de quem nao se tem saudade, porque se repetem na sua fugacidade, o terminar uma chamada telefonica com um "Entao va, um beijinho grande!". Despegar do medo, ler noticias breves a um idoso lucido do cafe, comentar a realidade politica tratando-o por tu e repetir a graca por respeito e desejo de manter velhos lacos, cumprimentar com um abraco o inimigo faustoso e por tras confirmar-lhe o odio, aparar dez lapis de carvao de uma vez porque as lapiseiras de minas finas se partem vezes demais. Sao tudo coisas. Estas coisas. Gastar palavras para reconhecer nos outros quem sao.
Por vezes pessoas parecem coisas e coisas parecem pessoas. Outras vezes sao mesmo. Afora horas, aquela culpabilidade de se ter gasto o tempo todo e fruto de uma elementar humanidade redimida por gestos simples. Cada gesto de cada pessoa e um esquema na sua identidade. O texto simetrico, a obra pos-moderna, a literatura de pacotilha, a literatura de peso e de mesura , as paixoes repentinas, as incertezas, o carteiro tumido, a empregada do cafe que recebe trocos enquanto exibe a perna por baixo do avental branco, a senhora da padaria com as maos sujas de farinha e a memoria limpa de sonhos, os empregos esparsos, os textos do dia, a Sagrada Escritura, o homem do outro lado da linha de telefone que diz ser impossivel enviar dinheiro, a mulher que chora, outro homem que soluca, a fazedura das camas, a comida na mesa, o talento, a reputacao, os livros empilhados aos cantos da casa, o barulho da escola quando as criancas comemoram a falta do professor, o despejar do lixo, as viagens, os convites para jantar, os convites para trabalhar, sao tudo coisas que os autores convertem em realidade, porque as fazem, sentem e as tornam suas. Por serem o que sao, inesperadas e planeadas, segundo um codigo de conduta das pessoas, sao inatacaveis. O mundo e identificado por este amontoado de inetencoes. Continuando: a mancha de agua debaixo de um ceu luminoso, o berro contra a vizinha do lado que nao consegue falar num volume aceitavel, a ladainha dos feirantes, a conversa na cafetaria sobre filhos e netos exibidos em carrinhos com rodas enormes, expostos numa montra, o casal de floristas farto de si mesmo. Sao coisas que acontecem. As pessoas tem sempre culpa de serem alguma coisa, mas podem ser muito mais do que isso.
-E-